O Fado

14-05-2010 20:00

 

O Fado na Construção da Identidade Lisboeta

 

 

 

Irina Bárbara Pinheiro da Fonseca

 

 

 

(José Malhoa, Fado, 1910, Óleo s/ tela, Dim. 1525mm x 1855mm, localização: temporariamente em exposição no Museu do Fado, Nº de Inventário:MC.PIN.1. Fonte: www.museudacidade.ot)

 

 

 

 

Disciplina: Estudos Olisiponenses

 

 

 

O Fado é o género musical mais português desde o início do séc. XX. Este género caracteriza Portugal internacionalmente como um país de saudosistas com uma forte ligação ao imaginário marítimo, rural, político e amoroso. No entanto, no séc. XX o Fado era já compreendido como um género musical que fazia muito mais parte da capital do que do resto do país. As dificuldades que este género ultrapassou até chegar à consagração que hoje apresenta originaram a falta de documentação e de apreciação que tanto dificulta o estudo do Fado. Mesmo assim, existem artistas da época onde o seu olhar sensível não pode deixar de lado o Fado emergente na altura. Os artistas em estudo, José Malhoa (1855-1933) e Cottinelli Telmo (1897-1948), são um pequeno exemplo de como foi visto o Fado no momento da sua transição e ascensão entre as várias classes sociais assim como o modo pelo qual este género se tornou essencialmente uma prática musical urbana característica da cidade de Lisboa.

A história do Fado é analisada e criticada, principalmente com fundamentos literários e não apenas teóricos, pelo professor Rui Vieira Nery em Para uma História do Fado. Tentando compor um corpus que justifique o aparecimento do Fado Vieira Nery apresenta também um conjunto de condições favoráveis ao seu aparecimento em Lisboa e à sua condição caracterizadora da cidade de Lisboa. Remetendo o leitor a 1807, ano em que a família Real foge para o Brasil, explica que Lisboa se tornou o palco principal para as transformações sociais, políticas e militares no final desse século. Lisboa tornou-se então uma cidade obrigada a transformações e reorganizações espaciais para dar lugar aos habitantes vindos do exterior, tanto do país com da própria cidade. Estes futuros habitantes da capital foram o produto gerado pela ascensão e preocupação comercial/industrial, pelo retorno de portugueses e escravos das colónias, depois e durante a abolição da escravatura, e ainda o produto da descolonização. Toda esta afluência de novas identidades populacionais vincou o já existente contraste entre os bairros pobres e os bairros ricos. Para a compreensão do olhar artístico sobre o Fado representado por estes artistas é ainda necessário ter em conta todas as tradições que cada nova identidade populacional trouxe consigo e o início do aparecimento de novas identidades originadas pelo estimulante crescimento da metrópole, como é o caso do espírito boémio. O boémio é uma personagem que pertence à classe alta mas que, não conseguindo resistir aos estímulos que a cidade lhe proporciona, procura conhecer e viver cada oportunidade que tem ao seu dispor. Portanto, este intelectual atravessa todas as classes sociais e todos os lugares da cidade em busca do prazer libertador do enclausuramento da sua classe. É neste contexto que o boémio começa a ter contacto com os bairros mais pobres onde o Fado é fortemente vivido. Vieira Nery baseando-se em escritos da época analisa o valor depreciativo do termo “Fado” como sendo originariamente associado às casas de prostituição sendo até alargado a quem as frequentava, os fadistas portanto. Sendo assim, o Fado é, desde cedo, é uma prática musical marginalizada pela sociedade mas será mais tarde aceite como uma característica lisboeta através da sua inserção nas classes altas muito pelo meio dos intelectuais boémios e pelo Estado Novo. No início do séc. XX o Fado é já um género musical apreciado mas ainda sobre uma sombra de preconceitos até começar a ser reconhecido internacionalmente através de Amália Rodrigues (1920-1999). Enquanto o Fado é cada vez mais apreciado surgem obras como o Fado, 1910, de José Malhoa e A Canção de Lisboa, 1933, de Cottinelli Telmo representando o Fado com uma característica de Lisboa. Ambos os artistas frequentaram a Academia Nacional de Belas Artes de Lisboa. Malhoa foi quem se destacou mais profissionalmente e em vida. De um lado Telmo cai no esquecimento da maioria do povo português, como nos diz Miguel Vaz[1]. Por outro lado, Malhoa foi o pintor mais consagrado e mais homenageado em vida. Apesar de ultrapassar por vários momentos de instabilidade política, Malhoa foi sempre reconhecido pela sua mestria em representar as gentes e os costumes de Portugal. Telmo foi também um artista consagrado, mas nunca como Malhoa, mais como arquitecto, apesar de ter feito mais para além da sua formação académica. Telmo, tal como Malhoa, recebeu várias encomendas públicas acabando até por ser o arquitecto – chefe na Exposição do Mundo Português de 1940. As obras em estudo são importantes porque, como nos diz Deleuze[2] o mais importante é a expressividade da “força” na obra. Nestas obras a “força” que o filosofo nos fala é o Fado como uma representação da identidade lisboeta. A obra de Malhoa chega a ser considerada um “documento da vida contemporânea”[3].

O Fado, obra-prima de Malhoa, apresenta-se ao espectador como um quadro onde a cor vibra com a melodia da guitarra portuguesa. Malhoa, em primeiro lugar, chama a atenção do olhar do espectador para a figura feminina centralizando-a através da cor e da luz que nela incidem. A mancha vermelho vivo da saia de personagem aliada à camisa desajeitada e à sua posição relaxada expressam subtilmente o prazer e o sentimento que esta figura experiencia ao ouvir a melodia. De seguida, o olhar do espectador é levado ao fadista. Esta figura masculina encontra-se vestida a rigor para a ocasião, usando fato e gravata com um casaco meio vestido meio despido no ombro esquerdo, como tradicionalmente se usava. A expressividade das personagens sobre um pano de fundo de interior representa tanto a cumplicidade das personagens e a sentimentalidade ao ouvir o fado ou ainda a ligação do Fado ao clandestino ou ao marginal. Para executar a sua obra Malhoa dirige-se e insere-se verdadeiramente num bairro tipicamente lisboeta e tipicamente fadista, a Madragoa. O artista pintou duas personagens típicas daquele bairro que contratou para lhe servirem de modelo. Malhoa procurou ao máximo a verdadeira expressividade de tocar o Fado e de o ouvir. No entanto, o que faz deste quadro um elemento do quotidiano urbano é, em primeiro lugar, o contexto espacial em que é apresentado. É evidente para o espectador da época que se trata de um dos bairros mais pobres da cidade de Lisboa não só pela desorganização do espaço como pela ornamentação do mesmo. Se imaginarmos as duas personagens, tal como estão posicionadas, com um pano de fundo de um salão de festa da aristocracia teria o mesmo significado? Malhoa escolhe representar o Fado tradicional e original (se é que alguém sabe qual a verdadeira origem do Fado) antes da sua ascensão social. É também necessário ter em mente que no mesmo ano Salazar impôs a carteira profissional de fadista e de guitarrista de Fado. O artista procura representar o Fado como um género marginalizado pela alta classe da sociedade e bem aceite pela classe baixa. São os bairros mais desfavorecidos que vão preservar, e talvez ainda preservem, esse Fado visto por Malhoa. É também neste quadro que se pode ver algumas das tradições lisboetas como o manjerico associado às Marchas Populares e em termos religiosos, o Senhor dos Passos. Num segundo registo, este espaço interior e íntimo vai reforçar a cumplicidade das personagens que juntamente com o copo e a garrafa de vinho fazem lembrar ao espectador os primórdios fadistas e cantadeiras, as associações às casas de prostituição, o boémio e ainda a mítica Maria Severa. Há ainda que fazer notar o à vontade das personagens, nas sua posições relaxadas e expressivas, no copo de vinho e da garrafa já bebida e até mesmo do cigarro esquecido na mão ou daquele que se encontra no chão. Este à vontade pode representar a naturalidade de cantar o Fado, a sua origem como um género pouco conhecido e divulgado nos salões da aristocracia. Parece no entanto que Malhoa não tenciona reavivar a memória de Severa, ao contrário do que alguns críticos dizem, pois a figura feminina apenas contempla o fadista não participa no Fado. Maria Severa é conhecida pela sua aptidão para o Fado. Sendo assim, Malhoa sintetiza toda a história e vivência do Fado anterior a 1910, pretendendo eternizar a memória de um Fado lisboeta marginalizado, triste e boémio. Podemos ainda olhar a obra de Malhoa como uma forma de o próprio artista indicar por um lado o lugar originário do Fado por outro onde é que se poderá encontrar o verdadeiro e tradicional Fado.

Vendo e analisando o filme de Telmo pode-se encontrar algumas semelhanças e algumas diferenças em relação à obra de Malhoa. A Canção de Lisboa inicia-se com uma vista panorâmica de Lisboa onde a carreira arquitectónica do realizador é uma forte influência pois a arquitectura e o espaço labiríntico da cidade são uns dos primeiros aspectos que o realizador apresenta. Depois a imagem centraliza-se num dos bairros de Lisboa, o Largo das conchas, sempre acompanhada por um Fado que canta a cidade. A Lisboa que Telmo filma é também uma cidade cheia de tradições populares como as Marchas Populares, as Touradas e os concursos de associações. O realizador mistura o género cómico com o musical realizando a primeira comédia portuguesa feita em Portugal e com os meios portugueses. As personagens principais são caras já conhecidas do mundo do teatro. A grande diferença entre o filme de Telmo e o quadro de Malhoa é a contextualização espacial do Fado. Telmo apresenta o Fado já como um género musical apreciado por uma elite portuguesa e já com um local específico para ser ouvido e cantado, como no final do filme vemos a casa de Fado “Retiro Alexandrino”. A visão depreciativa do Fado já não é marginalizada pela sociedade porém, há ainda uma não-aceitação total ou uma total ascensão do Fado. Ambos os autores se situam numa época em que o Fado é já um género aceite pela sociedade mas não deixam esquecer a sua origem mais como um género ligado ao pobre citadino de Lisboa. Na cena da casa de fados Vasco, o estudante de Medicina abandonado pelas tias ricas, tem dificuldades em aceitar o Fado chegando mesmo a dizer em alto e bom som “O Fado é o veneno da raça. Morram os Fadistas”. No entanto, sendo um boémio Vasco conhece e canta o Fado. Como a sua situação social e económica estão em risco, Vasco entrega-se ao Fado e acaba por se tornar uma pessoa admirada por todos ao contrário do que acontecia antes. Com este episódio Telmo apresenta os dois lados do Fado, o tradicional e marginalizado e a sua aceitação por parte elite. No desenrolar do filme existem várias personagens que livremente cantam o Fado. Uma das cenas mais significativas é o momento em que Vasco é despejado da sua casa e os seus “sócios” ajudam-no com um enredo enganador que é cantado como se de um Fado se tratasse. Como já foi referida a importância do ano 1910 é importante neste episódio notar-se a reacção do polícia que ao ver todo o aparato e o amontoado da população pergunta “Ó cavalheiros, a licença?” e prende o grupo todo por suspeita de estarem a fazer uma cegada. Juntamente com este universo popular e tradicional acrescenta-se a originalidade de Vasco a cantar o Fado. Fica assim, um forte registo dos tempos em que o Fado começa a sair das ruas dos bairros e encaminha-se para os salões. O dirigente da casa de fados diz que talvez seja uma boa aposta porque os “carpinteiros, marceneiros e entalhadores” já estão muito ouvidos, já não são tão atractivos como um estudante, um boémio. Telmo apresenta o Fado ao serviço de uma classe elitista, onde o boémio também tem o seu papel, mas com a forte presença dos seus antecedentes e das suas origens populares e de bairros mais pobres.

Estas duas obras são uma forma de registar o Fado como uma característica de Lisboa através das personagens que cantam o Fado e o tocam, através do espaço urbano característico onde é contextualizado e pela problemática das classes sociais presente em ambas as obras. Hoje em dia o Fado é uma candidatura a Património da Humanidade junto da UNESCO, proposto pela EGEAC e a ser aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa[4]. As típicas casas de Fado não deixaram de se localizar nos bairros tipicamente fadistas como é o caso da Madragoa, do Bairro Alto e da Mouraria. O Fado é hoje em dia uma característica lisboeta porque nenhum turista visita Lisboa sem ouvir o Fado, no entanto, esses fadistas não são os portugueses e dos bairros mais desfavorecido, como o Vasco de Telmo ou as personagens de Malhoa. A actual Lisboa proporciona muitos locais onde o Fado tem o papel principal mas o português fica limitado pelos altos preços dirigidos aos turistas. Ainda hoje olhando uma vez mais as obras em estudo pode-se dizer que representam o Fado lisboeta porque os seus principais elementos estão representados: a expressividade dos fadistas, a guitarra portuguesa como instrumento indissociável deste género musical, o ambiente citadino dos bairros pobres aliado ao clandestino do momento, à taberna e às casas de Fado. Estas são as imagens que ficam na mente de um ouvinte de Fado ou de um espectador destas obras. Como explica Roland Barthes[5] as imagens produzem e representam uma ideologia ao mesmo tempo que são produções de convenções sociais e estéticas. Por sua vez essas convenções são formadas por signos que contêm um código de interpretação. É apenas através do conhecimento desse código e do seu contexto social que se consegue interpretar as imagens. Sendo assim, Malhoa e Telmo representam imagens ao serviço do Fado tornando-o num símbolo que aliado ao seu significado (cultura lisboeta) dará origem ao signo sendo este o Fado como uma característica que faz parte do indivíduo citadino lisboeta.

 

 

 

 

Bibliografia:

 

Barreto,  Mascarenhas. [Fado]:  origens líricas e motivação poética = lyrical origins and poetic motivation. Lisboa:  Aster;

Batista, Tiago. “Na minha cidade não acontece nada. Lisboa no cinema (anos vinte – cinema novo).”, Ler História, 48, 2005. Lisboa;

Deleuze, Gilles. Francis Bacon : Logique de la Sensation, Paris : Éd. du Seuil, cop. 2002 ;

Henriques, Paulo. José Malhoa.  Lisboa: Inapa,  D.L. 1996;

Nery,  Rui Vieira. Para uma história do fado .  Ed. rev. e aumentada. - Lisboa :  Público;

Ortigão, Ramalho et al. Livro da homenagem ao grande pintor José Malhôa. Lisboa:  Fiat Lux,  1928;

Sturken, Marita and Lisa Cartwright. “Images and ideologies”, “How we negociate the meaning of images”, “The value of images”, “Image icons”, Practices of Looking. An Introduction to Visual Culture. Oxford / New York: Oxford University press, 1997. pp. 21 – 42;

 

Webgrafia:

 

 “Fado Votado a Património”, Metro Nacional, quarta-feira, 12 de Maio de 2010, pp.4, registado online em: https://metropoint.metro.lu/20100512_Lisbon.pdf

 https://www.alamedadigital.com.pt/n10/cottinelli_telmo.php

 

 

Filmografia:

 

A Canção de Lisboa, realização de Cottinelli Telmo, 1933. Produção Tóbis Portuguesa, versão restaurada por Lusomundo Audiovisuais, S.A., 2009;



[2] Gilles Deleuze, 2002, pp.39

[3] Paulo Henriques, 1996, pp. 52

[5]Sturken, 1997, pp.29-30