Tim Burton Estéticas e Poéticas

09-05-2010 22:32

 

Tim Burton, Estéticas e Poéticas: da Alice às Tesouras

 

 

 

Irina Bárbara Pinheiro da Fonseca

 

 

 

 

 

“The word normal always scared me because

 that indicated something that was quite

 subversively terrifying in some way”

Tim Burton, On View[1]

 

 

 

Na obra de arte o mais importante é captar a “Força”como nos diz Gilles Deleuze em Peindre les Forces[2]. Essa “Força” irá tornar o invisível, que é apenas intuído pelo sujeito, no visível e portanto perceptível. É através da décomposition e da recomposition des effects que a obra da Timothy Walter Burton pode ser considerada um modo de expressar “Forças”.

Muitos críticos de cinema apontam para os filmes de Tim Burton como uma falha narrativa mas o mais interessante da sua obra encontra-se na sua captação do real, através da sua sensibilidade como ser humano, e na sua expressividade plástica demonstrada pelo uso da sua técnica. Muitas estéticas e poéticas são apontadas como influências e expressividade na obra de Burton. Porém essa multiplicidade presente na sua obra deu origem ao estilo bartoniano. Como é analisado na tese de mestrado «O Imaginário Fantástico de Tim Burton: Exemplos de Gótico Moderno», Burton preocupa-se com o “potencial simbólico esbate a fronteira entre as diferentes estéticas”[3]. É no potencial simbólico que o autor/realizador explora a ambiguidade e o medo humano através de um estilo muito particular onde articula o fantástico, o gótico, o surrealismo e o expressionismo.

Burton utiliza a junção de todos estes estilos para fazer o espectador deslocar-se do seu real e inserir-se no real que lhe apresenta tornando assim o mundo surreal no mundo real. É com esta ambiguidade, através da deslocação do espectador para um outro mundo e da verosimilhança existente neste outro mundo, que o realizador expressa simbolicamente a sua arte.

Tanto em Edward Scissorhands, de 1990, como em Alice in Wonderland, de 2010, a ambiguidade é trabalhada em paralelo com os contrastes presentes em toda a rodagem dos dois filmes. Cada filme se inicia de forma diferente porém ambos têm a capacidade de projectar o espectador para o mundo surreal e onírico, respectivamente. No primeiro filme é o uso da voz off que leva o espectador a um outro mundo já no segundo a queda simbólica da protagonista leva o espectador a um outro lado do mundo, às profundezas, como define Deleuze[4] ao analisar a obra de Lewis Carroll a base literária do filme. A norma versus o subjectivo é uma das características usada para captar o real paralelo fazendo o espectador apoderar-se desse real metamorfoseando-o no seu próprio real, sentindo medo e revendo-se nele. O espectador inquieta-se pela possibilidade do impossível. Burton cria uma sociedade paralela à do espectador onde a normatividade é exagerada, como por exemplo: a sociedade que é posta em contraste com o castelo de Edward ou a liberdade de Alice na sua sociedade ou ainda a igualdade exigida na corte da Rainha de Copas. O realizador parodia e subverte a normalização que exclui qualquer sujeito que nela não se integre. Esta norma parodiada é simbolicamente o gosto que pressupõe uma normatividade ligada à universalidade contrastando com a subjectividade. Este contraste é evidente no tratamento da sociedade padronizada dos subúrbios norte-americanos dos anos 60 do século XX no filme de 1990. Estes são caracterizados pela igualdade geográfica/espacial em contraste com o castelo sombrio, escuro e espacialmente desnivelado onde vive o sujeito que é socialmente excluído por não conhecer e compreender o gosto e por ser fisicamente um monstro. Esta imagem de monstro é analisada segundo o que diz Ieda Tucherman numa entrevista à revista Textos e Pretextos onde para ela um monstro é “o que excede, transgride, desorganiza…”[5]. Em Alice in Wonderland, Burton alia-se ao seu humor negro, criando uma situação de constrangimento ridículo, para desmascarar o gosto que caracteriza a corte da Rainha de Copas e para isso usa a figura do Chapeleiro Louco. O wit fortemente presente em Carroll é arquitectado em Burton pela figura do Chapeleiro Maluco que acaba por ser uma figura reveladora de falsidades/verdades. Sendo a verdade uma construção humana, subvertendo-a e parodiando-a, é esta personagem que relembre Alice da possibilidade daquele mundo ser real ou por outro lado um fruto da sua imaginação:

Chapeleiro- Still believes this is a dream, do you?

Alice- Of course! This all came from my own mind.

Chapeleiro- That would mean that I’m not real.

Alice- I’m afraid so, you’re just a figment of my imagination.

 

Ligado a essa normatividade está o poder institucional que vigia e dita a norma do gosto e assegura-a. É Gillo Dorfles[6] quem nos dá esse ponto de vista ao escrever que “a cultura autoritária e repressiva” estabelece o gosto ou “a unidade do gosto” e não dá espaço aos outros gostos para emergirem. Em Burton essa procura repressiva pela segurança normativa é representada através da polícia e do exército da Rainha de Copas aos quais os protagonistas, como monstros, fogem. De um outro ponto de vista este episódio pode também basear-se na visão do realizador acerca da pseudoarte[7] que segundo Dorfles são “formas, que não pertencem à natureza, que são «artificiais», produzidos com um fim que não saberíamos definir de outro modo senão «estético»”. Esta ideia da estética como artificial é parodiada por Burton com o uso de barrigas, narizes e outras partes corporais que são falsas/artificias mas que fazem parte do gosto da corte e que lhes são impostas pelo gosto autoritário e repressivo da Rainha de Copas.

Alice pode ser comparada à monstruosidade de Edward no sentido em que “Why is it that you are always too small or too tall?” perguntado pelo Chapeleiro Louco. Uma das temáticas exploradas por Carroll é o crescimento da criança tendo também em consideração a contextualização do motivo poético da sua obra. No filme de Burton o tema não parece ser tão explorado como na obra que o inspira porque o realizador transforma a menina de sete anos numa jovem de 19 anos vivendo os anos de transição adolescência para o mundo adulto. Mesmo assim Alice tem de se modificar fisicamente uma série de vezes para poder escapar aos perigos e inclusive entrar no Wonderland. É esta modificação corporal como forma de desordem que liga Alice a Edward. Esta ligação não é feita tanto pela contradição homem/máquina mas pela modificação física que ambos sofrem. Edward é um ser incompleto e Alice é um ser com a possibilidade de ainda poder ser completado como ser humano. Para o mesmo efeito, logo no início do filme Burton representa Alice como modo de desorganização de norma através do conflito entre a mãe e a filha onde Alice lhe pergunta “Who’s to say what it’s proper? What if that was agreed that proper was wearing a codfish on your head? Would you wear it?” fazendo o espectador pensar a norma logo desde início como assunto da narrativa.

Uma outra temática explorada em ambos os filmes ligada à norma e ao gosto é o Bem e o Mal. Estas duas entidades existentes no ser humano são retratadas em Edward Scissorhands pela dificuldade que o protagonista sente em diferencia-las ou em descodificar as normas da sociedade em que tenta inserir-se ou em que o tentam inserir. Também aqui fica claro o contraste que Burton usa para caracterizar essas entidades que acabam por ser uma construção da sociedade normativa. Edward, percebendo todo o esquema que Jim constrói mas mesmo assim faz o “assalto” à casa porque Kim lhe pediu. Ele não consegue compreender que não o deveria ter feito e quais as consequências que o acto implicaria. A mesma situação acontece quando Edward conta à sua família adoptiva sobre o assédio sexual feito por Joyce. No filme Alice in Wonderland estas duas entidades são representadas através da divinização das duas irmãs, a Rainha de Copas e a Rainha Branca representando o Mal e o Bem respectivamente. Para além do cenário e da caracterização destas duas personagens estarem de acordo com a sua representação é ainda o contraste e o constante conflito que as define. Fazendo a analogia do buraco em que Alice cai com o inconsciente humano, o Bem e o Mal serão duas entidades conflituais existentes em cada ser humano que a partir da adolescência, derrotando ou lutando contra a norma que subtrai a subjectividade do individuo, se começa a desenvolver numa aparente harmonia.

Nos dois filmes a sociedade é representada como o engenho que gera o gosto/norma e a dualidade do Bem e do Mal. As mãos de Edward representam a impossibilidade da compreensão humana das dualidades Bem /Mal, Natural/Artificial e da Norma/subjectivo. É a sociedade que impõe a Edward as representações destas dualidades através do contacto e da convivência na mesma. Quanto a Alice é também a sociedade, tanto no seu mundo real como no Wonderland, que lhe impõe forçadamente a distinção de Bem e do Mal fazendo até, contra a sua vontade inicial, a protagonista cortar simbolicamente a cabeça do dragão derrotando-o.

Mais uma vez com o apoio na obra de Dorfles e concluindo que o gosto permite ao indivíduo criticar a obra de arte e que, sendo assim, é uma “faculdade” avaliada “empiricamente e considerada essencialmente subjectiva”[8]. Burton transforma Edward num artista (escultor, jardineiro e cabeleireiro) que naquela sociedade se faz notar não só como uma novidade que gera interesse mas também como um agente criativo “encarnando” o subjectivo do artista. Uma vez mais Dorfles analisa o gosto sendo que onde antes o indivíduo tinha uma “universalidade do credo estético”[9] hoje, depois de todas as inovações artísticas emergidas no século XX, tem “diversidades de gostos” e “uma generalização de formas artísticas”. Perante esta teoria o espectador mais atento pode ver o realizador na personagem de Edward através de um artista que afirma a sua subjectividade combatendo a unidade do gosto e afirmando a necessidade subjectiva desta faculdade humana como um efeito da sua obra.

É com a ambiguidade das suas imagens e poéticas que Burton inquieta o espectador ao ponto de se pensar nas suas personagens, ao ponto de se incomodar com as situações criadas e representadas pelo realizador. Depois de feita, a sua obra fica em “aberto” para as várias e infinitas interpretações do espectador. Para além de Burton dar vida às inquietações pessoais do espectador é o próprio espectador que vai analisa-la e dar-lhe a sua própria experiência e com isso o seu próprio significado.

 

 

Bibliografia:

Avelar, Mário. “Sabotar a convenção”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, Impresa Publishing, Nº 1028, 2010, p. 16;

Deleuze, Gilles. Francis Bacon : Logique de la Sensation, Paris : Éd. du Seuil, cop. 2002 ;

-          Critique et clinique, Paris: Éd. de Minuit, cop.1993 ;

Dorfles,  Gillo. As oscilações do gosto:  A Arte de Hoje entre a Tecnocracia e o Consumismo. Trad. Carmen Gonzalez,  Lisboa:  Livros Horizonte,  1974;

Ferreira, João Mendes, “O País do Inconsciente”, Jornal de Letras, Artes e Ideias. Impresa Publishing, Nº 1028, 2010, p. 18;

 Ferreira, José Pedro. “O Monstro é o Corpo do Outro ou o Outro do Corpo”,  Textos e pretextos, Lisboa:  Faculdade de Letras. Centro de Estudos Comparatistas, Nº 8, 2006, pp. 156-159 ;

Martins, Maria João. “Mundos sem Fim”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, Impresa Publishing, Nº 1028, 2010, p. 17;

Santos, Maria Emília Brederode. “À Prova de Modas”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, Impresa Publishing, Nº 1028, 2010, p. 19;

Simões, Maria João Albuquerque. O fantástico. Coimbra :  Centro de Literatura Portuguesa,  2007 ;

Siza, Rita. “Retrato de Tim Burton enquanto Surrealista Pop”, PÚBLICO Comunicação Social SA: Ípsilon, 27 de Novembro, 2009, pp. 6-11;

Soares, Carla Marina M. J. Simões. O Imaginário Fantástico de Tim Burton: exemplos de gótico moderno, Dissertação de mestrado em Estudos Americanos apresentada à Universidade Aberta. 2008 ; «https://hdl.handle.net/10400.2/1368»

Vax,  Louis. A arte e a literatura fantásticas, Lisboa :  Arcádia,   1972.

Vieira, Alice. “A Herança”. Jornal de Letras, Artes e Ideias, Impresa Publishing, Nº 1028, 2010, p. 19;

 

 

 

 

 

Filmografia:

 

Alice in Wonderland. Dir. Tim Burton. 2010. DVD. EUA : Walt Disney Studios Home Entertainment ;

Edward Scissorhands. Dir. Tim Burton. 1990. DVD. Los Angeles: 20th Century Fox Home Entertainment. 2000.

 

 

Webgrafia:

 

https://www.timburtoncollective.com/

https://www.moma.org/interactives/exhibitions/2009/timburton/index.php



[2] Gilles Deleuze, 2002, pp.39

[3] Carla Sousa, pp.60

[4] Gilles Deleuze, 1993, pp. 34

[5] Textos e Pretextos, Nº 8, pp. 158

[6] Dorfles, 1974, pp. 38

[7] op.cit., pp. 37

[8] op. cit., pp. 27

[9] op.cit., pp. 139